terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Alento

Vem com a noite e o tormento
A visão de que sou o rebento
Desse mundo, do padecimento.
E cá, nesta parte onde sento
Visita-me constante o vento
Sopra forte, sussurrante, na orelha
E eu me atento:
“Já não há alento!”
Não há passo, nem compasso
Respiração e nem mesmo
um braço a abafar
Só há tempo.

Tempo,
Vento,
pensamento,
Que nasceu e padeceu
Em sofrimento
Povoado de amor e tormento
Mas já vai encontrar,
Desperto e atento,
O seu tão alvejado acalento
Logo junto ao testamento
Sob a pedra fria deste túmulo
Em que hoje em dia, me acustumo
E me sento.

Confissão e Devaneio

Toda vez que tomo banho sinto os meus pensamentos correrem lisos - como as gotas que caem do chuveiro – é uma coisa que me ocorre facilmente, sem o menor esforço as idéias aparecem e somem, sem deixar rastros. Algumas delas, muito provavelmente, nunca voltarão a me ocorrer, mas, tanto faz, já faz muito tempo desde que me apeguei com força à ultima idéia que tive em que senti alguma legitimidade, as que me chegam agora são pálidas, débeis, não se sustentam sozinhas e nem ao menos conseguem se pôr em pé. Todas, sem exceção são – e estou convencido disso – prestidigitações, não há nelas o menor teor de realidade e consigo uni-las nos pares de opostos mais absurdos, as minhas margens não tem sido a direita e a esquerda, mas a de cima – apolínea - e a de baixo – dionisíaca se quiserem, mas prefiro chamá-la: visceral – assim ela vai realmente de encontro com as coisas que sinto, ou sinto pensar.
Sinto pensar – bela expressão – a fundo – e afundo – essas duas coisas nunca estiveram totalmente separadas para mim, desde muito pequeno tenho sentido as idéias com mais força do que as próprias impressões, todas elas são a minha comoção contínua com o mundo, mundo esse que no meu tempo se faz a cada dia mais imediato, corporal, ao passo que o identifico com a insensatez do dicionário. Mundo insensato, sim. Lembro-me de quando criança do nojo que sentia das manifestações afetivas mais profundas – me causavam um pavor, um medo intenso – eram muito reais, muito táteis para poderem perseverar. O todo das relações era ao mesmo tempo sobrepujado por interesses, interesses que naqueles anos ainda não conseguia ver com clareza quais eram, mas hoje – com a alma embotada, o corpo infantil já enfermo pelo excesso de anos que me ultrapassaram e imbuído na mesma trama que me era estranha e ofensiva – consigo ver sem o menor dos problemas, ficou fácil distinguir e difícil viver.
Difícil viver, na medida em que, naqueles anos era só pensar nas coisas que elas se faziam presentes enchiam o espírito com uma massa densa, idéias dotadas de uma viscosidade, faziam sorrir a qualquer evento que se desse no mundo exterior a elas, pois depois de entornada a sua seiva em meu espírito, era muito tranqüilo ocupar também o mundo com elas. E cada planta, cada flor, cada homem isolado, continham em si toda a beleza e facilidade com que o mundo havia dotado as coisas. Pois uma montanha era só uma montanha, mas era também todos os tipos e variações de montanhas, não precisava ir a Irlanda pra saber como viviam os irlandeses, era fácil mesmo, os irlandeses viviam como os escoceses e estes, por sua vez, bebiam whisky como bebem cachaça os passagenses.
Não haviam segredos, pois grande parte de tudo que me formou o que sou – um traste – ainda me eram desconhecidos, e pras crianças não existem segredos, só há mistérios. Pois mistérios não são coisas que não podem ser reveladas, mas coisas investigáveis, e podia eu, até então, investigar. Hoje sou o que sou: traste, biltre, infame e romântico, por causa desses segredos que só adquirimos quando vamos ficando mais velhos, quando – pra ser heideggeriano, mas não o sendo, em absoluto! – o mundo se desvela aos nossos olhos e a terra se oculta, na mesma medida. Agora em idade adulta, tenho milhões de miríades de segredos, e guardo muitos que são alheios, me espremem o peito da forma mais agônica imaginável, tudo bem – temos que viver, não é mesmo? Não é importante inocular no nosso próprio pensamento a nossa dose diária de hipocrisia, o veneno da dissimulação? Ora bolas, como é possível viver sem essa coisa?
E por esse caminho fiz chegar ao ponto onde estou: saído de um banho onde tive uma revelação, nu em frente a um maço de cigarros vazios – e sem onde ter pra comprar pois já são quase duas – e matutando uma só coisa: sou de fato um romântico, dos piores que existem daqueles que são os mais nocivos, os mais ignóbeis, um verme cujo amor que não cabe dentro de uma só casa e é a arma mais “destrutiva” já inventada, sou assim como quem quer levantar, fazer levantar vôo a cada espírito cujas asas estão amarradas, mas também egoísta por não querer alçar vôo por mim mesmo, esse querer por todos – hoje eu sei – está diretamente ligado ao meu nojo infantil, é o interesse em ser homem, humano, de uma vez por todas, sem cair nos joguetes da vida prosaica e inútil, onde toda casa é própria e mesmo Deus já não deixa qualquer um entrar.
E o que tem isso a ver? Não sei, meu pensamento tinha voado para uma ilha, onde faz frio e onde é difícil imaginar a doçura pela qual o meu peito anseia. Mas, enquanto isso, vou continuar me encontrando com as bordas dos meus copos, com os filtros dos meus cigarros, com o ópio do meu espírito...