quinta-feira, 25 de novembro de 2010

Cativeiro

Por achar em todas as coisas mínimas o passo da maior grandeza eu me ferrei...
Querendo ver qualquer merda de qualquer humanidadezinha cultivada num apartamento.
Cercado por coisas que não são minhas mas, coisas que me detêm. Nada além de um prisioneiro.
Se possível encher a cara de ódio e vodca, para passar pelos outros idiotas sem ser notado.
Fedendo a sexo antigo, fedendo a suor de uma maratona que não percorri.
Uma batalha de outrora me faz ainda pensar que estou vivo.
É só nostalgia daquilo que não vivi.
É saudade das coisas que não virei a conhecer, mas que, caso tenha a oportunidade, explodirei sem pestanejar.
Queria voltar a rever aquelas montanhas, a única coisa real da minha vida. Aquela muralha que me aprisionava, também me tornava mais casto, mais puro, menos falso comigo. Porém hoje, quando vou até elas, elas se recusam em vir até mim. Não é uma questão de escolha. É uma questão de irreversibilidade.
Os olhos mudam com o tempo, o corpo muda com o tempo, o tempo muda com o tempo.
O tempo é o grande inquisidor das nossas vidas, e qualquer sentido que não se submeta as suas questões perece inevitavelmente. Burlar-lo é impossível, aceitá-lo ainda menos.
Como se por uma conspiração interna, vi que estou fechado, trancafiado no mundo e não consigo retomar a liberdade que está dentro do eu... eu já não existe... eu já era!
Então o que resta?
Acho que encontrar aquele resto de dignidade que guardei no fundo da gaveta do lado daquele revólver. E então carregá-lo com dignidade e disparar!
Contra mim? Contra alguém? Contra todos?
Não importa! Nunca será contra mim, nunca contra todos. Porém, toda vez que disparar contra mim atingirei alguém que cativei. O que, na verdade, não faz a menor diferença.
Já é tempo de libertar os cativos.

quarta-feira, 24 de novembro de 2010

Quem somos?

Preocupado em fazer as coisas;
Esquecido de ser os homens;
Confinado nas paredes cinza;
Acabado pra entender que somos,
Fulgazes vítimas das fomes;
Violentados pelas autoridades;
De quem não tem sonhos,
Pra outorgar vontades;
Viver por caminhos insanos.
Como fazem as pérolas,
Ao devorarem os porcos.
Pois tudo que é valor,
Se dá na aparência criada
Pelo ato de subjetivar.
Quem somos?

Do porque de mover-se...

Do porque de não conseguir mover um dedo
Surge a pergunta, que é na verdade anterior:
Qual dedo deve ser movido?
Da vontade de escapar do corpo dolorido
Vibra a alma toda num temor
Com qual arma morre o corpo já falecido?

Com o tempo que passa numa intensa lentidão
Quebra-se o pensamento que não argumenta
Mas torna-se apenas um zumbido
Que faz doer as vontades não saciadas,
os ventos não sentidos, os frios não aquecidos.

Queima forte a gélida amizade
Constituída com o não, com o niilismo
Que vai fazendo a vida, cadinho por cadinho,
Entornar um ácido no céu da boca.
Para que, a língua ardente,
não faça mais nenhum sentido.

Se, porém, quer mover-se,
Não se mova pensando.
O mundo foi feito pra estar
E nunca pra ser estando.

quarta-feira, 20 de outubro de 2010

Todas as noites, no auge da descrença,
peço a Deus que me retire do mundo.
Que evite a chegada do momento
Em que o insuportável se torne o mote
Da vida que ainda agora me interessa.
Peço que, com sua clemência,
me retire de vez o ar.
Me retire a visão, olfato, tato e paladar.
Pra que não possa ver o escravo a trabalhar,
Por que não quero cheirar o sangue no altar,
Pra que não possa eu, também, me mutilar
E pra que não saboreie o suor
daqueles que não poderão provar
do alimento que foram obrigados a cultivar.
Mas, principalmente, peço que me retire a audição.
não quero mais ser acossado pelas frases,
pela falta de sentido que apregoa todo homem do mundo
quando quer mostrar verdade naquilo que não passa de discurso.

Por favor, Deus, mate-me já ou faça jus ao que criastes neste mundo!

quarta-feira, 22 de setembro de 2010

Past tense

Se ainda naquele momento houvesse coragem
Pronunciaria teu nome uma derradeira vez
Deixaria de lado as incertezas da viagem
E pensaria concretamente na nossa inequívoca nudez.

Mas não teci as verdades sob o firmamento
Que de passagem parou para ver que acertava
Quando da aposta na minha incapacidade
Mais que declarada na minha mudez.

Não quis ver pela noite, rua, cidade,
As nossas mãos perguntarem porquês.
Já tinha certeza que, daquela feita,
Estava concluído o trabalho.
E que não seria
um chão, um teto, paredes, retalhos...
que promoveriam aquilo que o amor não fez.

E com o céu, que agora já não pára,
Você seguiu, sem olhar pra trás.

Eu ainda estou naquele tempo que não passa
Olhando em volta, em busca de voz.
Porém, já não há casa para alguém que se separa
cuja alma fica no passado - uma navalha.

Se mesmo o sangue que agora corre quente
Não se arrepende dessa senda já tomada
é porque o corpo já não estava mais presente,
e nosso enterro independe da mortalha.
Já vão queimando esses pensamentos tortuosos
Já não existimos nesse campo de batalha.

quinta-feira, 29 de julho de 2010

Mas, antes de qualquer coisa, eu preciso aprender a fala.

Aprender a dizer as coisas, retas, sem dar asas ao drama,
desfazendo tantas tramas na descomoção dos lábios tensos.
Tenho que desimaginar a contínua transa entre o espírito e matéria, deixar de ver nas pedras substâncias nada etéreas;

pôr de lado tanto sonho e perceber que é no mundo que mais medo escondo.

Tenho que olhar menos nos olhos - pessoas jamais entendem gestos - querem na doçura da boca ver ruir todos os sonhos.
E ver que se faz de palavras o seu mundo concreto.

Pois é prejuízo meu: saber que sou feito de carne e não de verbo
e ainda mais saber que é inválida a minha postura.
que preciso apalavrar-me, descarnalizar-me.
É prejuízo meu!

E é também só lembrar-me defronte ao médico que corpo e coração e fígado e cérebro são vocábulos,
e que ossos,
são os que sustentam.

Não obstante, para a minha última esperança, ainda não me conveceram de que alma é palavra.
É assim que dissolvo-a (matéria); desse modo que ainda penso fazer dela minha escrava.
28/07/2010
Cantei canções de esquecimento,
quis ver minha memória desaparecer,
e sentir morrer com o tempo
o trauma que da vida é crescer.

Mas, mesmo indo a deusa
Parar bem longe de mim, com o vento,
é difícil retirar o que da vida mesma
Já marcou e está cá dentro.

E não há mais profundo turbilhão,
mais intensos e determinantes sofrimentos
Do que aqueles que mesmo sem explicação,

São feitos na carne e não na história,
Não dependem da razão ou de Mnemosine,
deusa que de uma só vez, nos conserva e nos oprime.

27/07/2010
Frente-a-frente; face-a-face; dia-a-dia; passe e impasse.
Dei voltas na cintura do mundo,
Vi gente viva e também moribundos,
Galopei cavalos e tanques,
Subi em nossos altares e nos palanques.
Cri em nossas medidas e em nossas chances?
Ganhamos mais nas derrotas que nas revanches?

Como saber afinal se é o alvo ou a fecha?
Se o arco ou arqueiro?
As formigas ou o formigueiro?
Minha mãe ou o mundo inteiro?

É de vontade de saber que me afasto, bem matreiro...
E me reservo de perguntar sobre o que é pequeno e corriqueiro; e me perco a devanear o universo num cinzeiro.

Conjecturo constelações, outras terras, mundos, reinos, deuses. E acabo por esquecer-me do porque abstraio: é para não ver repetida no mundo, a minha imagem em tantas vezes...

27/07/2010

sexta-feira, 23 de julho de 2010

Dei ao teu corpo uma nova qualidade,
Fiz dele uma memória alva
e como se me escapassem as coisas
vivo nele como numa cidade.

Percorro em teu seio, um palavrório,
que de uma saliva imaginada
tornas a minha língua, quente e faminta,
nas tuas costelas, gesto mais simbólico.

De tua meninice percebi uma sina:
Não há nada em teu ventre que me permita enganar-me
Não há nada em teu sexo que impeça que eu minta.

Nunca em teus cabelos negros
haverá tanta profundidade
nem mesmo diante da desfaçatez
de um poeta que te cativa,
apenas porque dele, já se esvai a mocidade.
Dormi e acordei
assustei-me mas não cedi
ao sonho que me aconteceu
quando pensei e não dormi.

Comi mas não sentei
à mesa em que já senti
que fiz parte de alguém
algum lugar ou aqui.

Sofri mas não amei
porque já não quis sair
da treva em que depositei
o meu novo jeito de sorrir.

E como agora já não sei,
o que há de ser pra mim...
José! me ajude a dizer:
"Só sei que não vou por aí!"

quarta-feira, 30 de junho de 2010

Eu vi todos os medos
Longe, vindo a passos lentos
Sabendo que encontrariam em meu peito
A exatidão dos seus segredos

Bem de perto, o desespero,
Inequívoco pavor, um sem jeito.
Esquecer-me, já não posso... Caminharei
Rarefeito. Sob solas silenciosas
Lanças mil, tantos feitos
Indesfrutados por aquele, cujo sangue
Nauseabundo, desgraçado.
Ganhou o mundo, no meu leito.

Pesaroso, continuo, a viver desse modo.
Lânguidez irresolúvel, voluptuosamente morto.
Ancorado em tanto cais com os meus barcos falsos,
Sábio de sarjeta, aristocrata de nada.
Comendo nos meus vícios a vida debelada
Animal insáciavel, de uma sorte já traçada.
King without a kingdom, priest without faith.

terça-feira, 25 de maio de 2010

Dentro desta lâmpada votiva habita tua vida
Alma que nos trouxe aos pés de uma realidade
Já trespassada de humilhações indignadas
Obliterada pelas conversas que propõem novas verdades.

Começaremos daqui a pouco a saber amar
Daqui a um tempo faremos um muro, por nós...
E em um instante estaremos mais que sós,
Vai ser o fim da luz da tua lâmpada.

E eu, cidadão, que não habita lugar algum
Vou voltar a buscar a sede que hoje teu vinho sacia
Talvez num porre de conhaque...

Ou talvez, bebendo de volta
o meu próprio sangue que
misturado estará à água fria...

domingo, 9 de maio de 2010

Comiseração

Tento hoje ver o que é a minha vida,
Porém, não sei de onde devo olhar por ela.
Todo o olhar, todo lugar, toda ferida,
Está exposta na alma como numa tela.
As verdades que sempre cultivei,
São como as farças que em meu peito colocou
O mundo, desse medo de viver e ser;
O solo em que ainda piso com temor.
Quero felicidade, amizade, amor.
Mas só percebo inveja, falsidade, pavor,
Hipocrisia em pequenas lições - para crianças -
Condescendência, desânimo, desesperança...
Queria mesmo olhar nos olhos,
Fazer a sonhada dança,
Poder ser pequeno,
Poder ser sincero,
Poder voltar à franqueza da infância

quarta-feira, 28 de abril de 2010

Frases

Só dói tão agudamente porque é amor, se fosse simples dor o próprio corpo cessaria!

Só há contrato onde não pode haver contato. A lei vigia onde não quer ver poesia.

Liberdade essa palavra que à mente humana angustia, que não há ninguém que explique, porque é mera fantasia!

Volta a Ouro Preto

Voltei hoje à minha cidade
Percebi hoje a distância
Que mutila a mocidade
E me faz negar que tive infância

Hoje vejo a procissão
Que volteia os becos e vielas
Passando em baixo das janelas
Onde as cruzes são os próprios ombros

Com os olhos esgotados
Vejo agora essa gente
Que eu já quis olhar de frente
Mas que agora são finados

Eu mesmo, com essa dor no peito
Provinciano, como me foi imposto
Devo hoje abandonar meu posto
E sepultar-me em Ouro Preto

No meio

“No meio, estão os homens que lambem as mãos dos que dão socos, e sugam o sangue dos que levam socos, eis aí o meio!”
Maksim Gorki - Mãe


Porque no meio sobrevive a contração.
Nesse berço onde cresce no futuro,
A segurança de ser medíocre.
Onde humanidade se torna contradição

Porque no meio situa-se a ordem.
Está o orgulho adquirido na miséria,
De não olhar a ferida que sangra,
E de esquecer da mão que flagela.

E é no meio que esquecemos de que ser homens,
Vai além de cultivar a vaga idéia,
De propagar o mundo das coisas pela terra,
E ensinar aos miseráveis, mortos de fome,

A lamber as botas de quem o atropela,
A invejar os males que consomem,
Os espíritos que fogem a perceber
Que sua alma desapareceu pela janela

sábado, 24 de abril de 2010

Voluptuosos são da terra os teus frutos
Nos quais nascem as vontades,
A avidez, a necessidade, a coragem,
De sugar-lhe os maduros seios,
Apanhar as flores que me dão tua imagem
Caçar-lhe pelos densos bosques
Alimentar-me da tua carne maculada,
num banquete de insaciável voracidade

Experimentar um prazer mais ardido
Como se houvesse nisso a verdade
que busca o homem já perdido,
nos vales e colinas da cidade.
Que de cimento e sangue construídos
Escondem em si a realidade
Do corpo silente, enrubescido
Nesse momento único de felicidade.
Versos verterão lágrimas
Enquanto vidas se desencontrarem
Na solidão das turvas águas
Nos dissabores das corredeiras de ontem.

Sedento e faminto em terras áridas
Segue o poeta cuja pena morreu
No berço em que nascido, desenganou
Às crianças de vontades pálidas.

E no amor, seio da face ávida
Há mais fastio, lívida peste
Essa que já não é a nordeste,
E vem com vida, mostrar-se praga

E não há seca tão solene
Quanto a daquela sorridente lança
Que corajosa, corta o peito,
cava a chaga, desmembra e mente.
Frente ao próprio espelho
Onde todo ódio é semente.

sábado, 10 de abril de 2010

Ponto e Vírgula

As vírgulas me seduzem;
os pontos são tristonhos.
As vírgulas me conduzem;
não há pontos onde há sonhos.
Temos vírgulas onde há luzes;
mas é negro todo ponto.
Pois as vírgulas são homens;
e no ponto já não somos.
Para além do ocaso
que é forte nos lábios
eu temo seus olhos
acesos e fartos.
Onde frente à face
que traz a morte
transformo em desejo
um tempo em sorte.
Em que possa tomar-lhe
os braços suaves
sem que minhas mãos
possam mutilar-lhes.

segunda-feira, 5 de abril de 2010

Venhamos meus senhores
Empreguemos nosso nome em vão
Saibamos contar quantas luas são
Para calar nossos dissabores.

Cortemos em nossas camas
As noites frias, com o peso são
do não sonhar e não convalescer
com os antigos ardores

E a cada piscadela que se dará, então
Saberemos que agora, feitos de areia
os nossos olhos já se esqueceram
de lacrimejar ao olhar as flores

Pois já não há epicúreo jardim pra poder cultivar
nas remessas lascivas dos prazeres de hoje.
já podemos - é o que digo - agora nos deitar
sob o céu cinza onde um dia houveram cores.

05/04/10
Castor Azevedo

terça-feira, 23 de fevereiro de 2010

Alento

Vem com a noite e o tormento
A visão de que sou o rebento
Desse mundo, do padecimento.
E cá, nesta parte onde sento
Visita-me constante o vento
Sopra forte, sussurrante, na orelha
E eu me atento:
“Já não há alento!”
Não há passo, nem compasso
Respiração e nem mesmo
um braço a abafar
Só há tempo.

Tempo,
Vento,
pensamento,
Que nasceu e padeceu
Em sofrimento
Povoado de amor e tormento
Mas já vai encontrar,
Desperto e atento,
O seu tão alvejado acalento
Logo junto ao testamento
Sob a pedra fria deste túmulo
Em que hoje em dia, me acustumo
E me sento.

Confissão e Devaneio

Toda vez que tomo banho sinto os meus pensamentos correrem lisos - como as gotas que caem do chuveiro – é uma coisa que me ocorre facilmente, sem o menor esforço as idéias aparecem e somem, sem deixar rastros. Algumas delas, muito provavelmente, nunca voltarão a me ocorrer, mas, tanto faz, já faz muito tempo desde que me apeguei com força à ultima idéia que tive em que senti alguma legitimidade, as que me chegam agora são pálidas, débeis, não se sustentam sozinhas e nem ao menos conseguem se pôr em pé. Todas, sem exceção são – e estou convencido disso – prestidigitações, não há nelas o menor teor de realidade e consigo uni-las nos pares de opostos mais absurdos, as minhas margens não tem sido a direita e a esquerda, mas a de cima – apolínea - e a de baixo – dionisíaca se quiserem, mas prefiro chamá-la: visceral – assim ela vai realmente de encontro com as coisas que sinto, ou sinto pensar.
Sinto pensar – bela expressão – a fundo – e afundo – essas duas coisas nunca estiveram totalmente separadas para mim, desde muito pequeno tenho sentido as idéias com mais força do que as próprias impressões, todas elas são a minha comoção contínua com o mundo, mundo esse que no meu tempo se faz a cada dia mais imediato, corporal, ao passo que o identifico com a insensatez do dicionário. Mundo insensato, sim. Lembro-me de quando criança do nojo que sentia das manifestações afetivas mais profundas – me causavam um pavor, um medo intenso – eram muito reais, muito táteis para poderem perseverar. O todo das relações era ao mesmo tempo sobrepujado por interesses, interesses que naqueles anos ainda não conseguia ver com clareza quais eram, mas hoje – com a alma embotada, o corpo infantil já enfermo pelo excesso de anos que me ultrapassaram e imbuído na mesma trama que me era estranha e ofensiva – consigo ver sem o menor dos problemas, ficou fácil distinguir e difícil viver.
Difícil viver, na medida em que, naqueles anos era só pensar nas coisas que elas se faziam presentes enchiam o espírito com uma massa densa, idéias dotadas de uma viscosidade, faziam sorrir a qualquer evento que se desse no mundo exterior a elas, pois depois de entornada a sua seiva em meu espírito, era muito tranqüilo ocupar também o mundo com elas. E cada planta, cada flor, cada homem isolado, continham em si toda a beleza e facilidade com que o mundo havia dotado as coisas. Pois uma montanha era só uma montanha, mas era também todos os tipos e variações de montanhas, não precisava ir a Irlanda pra saber como viviam os irlandeses, era fácil mesmo, os irlandeses viviam como os escoceses e estes, por sua vez, bebiam whisky como bebem cachaça os passagenses.
Não haviam segredos, pois grande parte de tudo que me formou o que sou – um traste – ainda me eram desconhecidos, e pras crianças não existem segredos, só há mistérios. Pois mistérios não são coisas que não podem ser reveladas, mas coisas investigáveis, e podia eu, até então, investigar. Hoje sou o que sou: traste, biltre, infame e romântico, por causa desses segredos que só adquirimos quando vamos ficando mais velhos, quando – pra ser heideggeriano, mas não o sendo, em absoluto! – o mundo se desvela aos nossos olhos e a terra se oculta, na mesma medida. Agora em idade adulta, tenho milhões de miríades de segredos, e guardo muitos que são alheios, me espremem o peito da forma mais agônica imaginável, tudo bem – temos que viver, não é mesmo? Não é importante inocular no nosso próprio pensamento a nossa dose diária de hipocrisia, o veneno da dissimulação? Ora bolas, como é possível viver sem essa coisa?
E por esse caminho fiz chegar ao ponto onde estou: saído de um banho onde tive uma revelação, nu em frente a um maço de cigarros vazios – e sem onde ter pra comprar pois já são quase duas – e matutando uma só coisa: sou de fato um romântico, dos piores que existem daqueles que são os mais nocivos, os mais ignóbeis, um verme cujo amor que não cabe dentro de uma só casa e é a arma mais “destrutiva” já inventada, sou assim como quem quer levantar, fazer levantar vôo a cada espírito cujas asas estão amarradas, mas também egoísta por não querer alçar vôo por mim mesmo, esse querer por todos – hoje eu sei – está diretamente ligado ao meu nojo infantil, é o interesse em ser homem, humano, de uma vez por todas, sem cair nos joguetes da vida prosaica e inútil, onde toda casa é própria e mesmo Deus já não deixa qualquer um entrar.
E o que tem isso a ver? Não sei, meu pensamento tinha voado para uma ilha, onde faz frio e onde é difícil imaginar a doçura pela qual o meu peito anseia. Mas, enquanto isso, vou continuar me encontrando com as bordas dos meus copos, com os filtros dos meus cigarros, com o ópio do meu espírito...

quarta-feira, 3 de fevereiro de 2010

Irracional

Surge, com o desaparecimento do magnífico sol de verão
A incontrolável vontade de fugir, sumir, desaparecer
Vontade de ver a existência pelo oculto olhar do não ser
Vontade de juntar o corpo em frangalhos e colocar-se no chão

E de dentro dele, observar o mundo a construir-se em vão
Sabendo inútil toda a variedade de idéias e pensamentos
Que em verdade nada são para o mundo, fuligem querendo ser cimento
Pois com o homem, animal, tudo é via de trazer ao corpo satisfação

E não me venham falar em filosofia,
Nela tampouco há razão
Razão que só se vê no corpo que morre
Verdade única, essencial
Que escapou às mãos do homem
E de toda e qualquer prestidigitação

Por isso, te digo, meu pequeno peito
Não se infle com esse amor que te ofertam
Pois o poeta já dizia:
“o beijo é a véspera do escarro”.

terça-feira, 2 de fevereiro de 2010

Amor Outonal

Ainda hoje sinto
Diante de tua imagem
Um frisson
Que me impele
Aos passos infantis
Da criança que se descobre
Homem, amante e pobre.

Coitado daquele que
Em seus dias mais tenros
Não procurou os braços
De uma pequena dama.
Nos dias em que
As brincadeiras perdem a cor
E sente-se, pela primeira vez
Que já se ama.

Pois não importa o quão parca
E torpe seja hoje a vida.
Aqueles dias
Que há tempos já se foram
A memória há de sempre
Perpetuar.

Naquelas tardes outonais,
Excedido o verão da infância,
Na busca incessante
Pela crueza mundana,
Através do arrepio intimador
Que só se faz possível no amor.

É pena que a leveza ingênua
Que em tal época se faz plena
Se perca na dança trêmula
Da vida a se devassar.
O cotidiano acaba então
Por ultrapassar
Com sua lentidão rotineira
Àqueles momentos,
Sublimes toques, pequenos,
De gentilezas no olhar,
De sentimentos ternos,
Que podemos não mais ter,
Porém, impossíveis
De apagar.

E se é em sonho,
Que seja,
Mas a primeira
Que atraiu
O olhar
Sempre será
De onde
Trarei as forças
Para poder
Continuar
E quem sabe,
Um dia,
Sorrir novamente
E me enamorar.

segunda-feira, 1 de fevereiro de 2010

Fevereiro (palavras e devaneios)

Fevereiro
forte
fogueira
onde ferve
o carnaval.
Desperdiçando,
despedaçando,
sonhos
verdadeiros.
Fomentados
ano inteiro,
pra morrer
maduros,
embriagados,
em farrapos,
desordeiros.
E da vida
que se segue,
em cuja pureza
ancestral,
descansa
o canto
costumeiro,
da dama
virginal
mitigada
pela fome,
pelo animal,
que entorpece
a nobreza
de teus
antigos
beijos
primeiros.
Inebriada,
vai em frente
sofrer decerto
humanamente
o amor que escapa
por entre os dentes.

quarta-feira, 27 de janeiro de 2010

Passagem das Horas (Ode Sensacionista) - Álvaro de Campos

Trago dentro do meu coração,
Como num cofre que se não pode fechar de cheio,
Todos os lugares onde estive,
Todos os portos a que cheguei,
Todas as paisagens que vi através de janelas ou vigias,
Ou de tombadilhos, sonhando,
E tudo isso, que é tanto, é pouco para o que eu quero.

A entrada de Singapura, manhã subindo, cor verde,
O coral das Maldivas em passagem cálida,
Macau à uma hora da noite... Acordo de repente...
Yat-lô--ô-ôôô-ô-ô-ô-ô-ô-ô...Ghi-...
E aquilo soa-me do fundo de uma outra realidade...
A estatura norte-africana quase de Zanzibar ao sol...
Dar-es-Salaam (a saída é difícil)...
Majunga, Nossi-Bé, verduras de Madagascar...
Tempestades em torno ao Guardafui...
E o Cabo da Boa Esperança nítido ao sol da madrugada...
E a Cidade do Cabo com a Montanha da Mesa ao fundo...

Viajei por mais terras do que aquelas em que toquei...
Vi mais paisagens do que aquelas em que pus os olhos...
Experimentei mais sensações do que todas as sensações que senti,
Porque, por mais que sentisse, sempre me faltou que sentir
E a vida sempre me doeu, sempre foi pouco, e eu infeliz.

A certos momentos do dia recordo tudo isto e apavoro-me,
Penso em que é que me ficará desta vida aos bocados, deste auge,
Desta entrada às curvas, deste automóvel à beira da estrada, deste aviso,
Desta turbulência tranqüila de sensações desencontradas,
Desta transfusão, desta insubsistência, desta convergência iriada,
Deste desassossego no fundo de todos os cálices,
Desta angústia no fundo de todos os prazeres,
Desta sociedade antecipada na asa de todas as chávenas,
Deste jogo de cartas fastiento entre o Cabo da Boa Esperança e as Canárias.

Não sei se a vida é pouco ou demais para mim.
Não sei se sinto de mais ou de menos, não sei
Se me falta escrúpulo espiritual, ponto-de-apoio na inteligência,
Consangüinidade com o mistério das coisas, choque
Aos contatos, sangue sob golpes, estremeção aos ruídos,
Ou se há outra significação para isto mais cômoda e feliz.

Seja o que for, era melhor não ter nascido,
Porque, de tão interessante que é a todos os momentos,
A vida chega a doer, a enjoar, a cortar, a roçar, a ranger,
A dar vontade de dar gritos, de dar pulos, de ficar no chão, de sair
Para fora de todas as casas, de todas as lógicas e de todas as sacadas,
E ir ser selvagem para a morte entre árvores e esquecimentos,
Entre tombos, e perigos e ausência de amanhãs,
E tudo isto devia ser qualquer outra coisa mais parecida com o que eu penso,
Com o que eu penso ou sinto, que eu nem sei qual é, ó vida.

Cruzo os braços sobre a mesa, ponho a cabeça sobre os braços,
É preciso querer chorar, mas não sei ir buscar as lágrimas...
Por mais que me esforce por ter uma grande pena de mim, não choro,
Tenho a alma rachada sob o indicador curvo que lhe toca...
Que há de ser de mim? Que há de ser de mim?

Correram o bobo a chicote do palácio, sem razão,
Fizeram o mendigo levantar-se do degrau onde caíra.
Bateram na criança abandonada e tiraram-lhe o pão das mãos.
Oh mágoa imensa do mundo, o que falta é agir...
Tão decadente, tão decadente, tão decadente...
Só estou bem quando ouço música, e nem então.
Jardins do século dezoito antes de 89,
Onde estais vós, que eu quero chorar de qualquer maneira?

Como um bálsamo que não consola senão pela idéia de que é um bálsamo,
A tarde de hoje e de todos os dias pouco a pouco, monótona, cai.

Acenderam as luzes, cai a noite, a vida substitui-se.
Seja de que maneira for, é preciso continuar a viver.
Arde-me a alma como se fosse uma mão, fisicamente.
Estou no caminho de todos e esbarram comigo.
Minha quinta na província,
Haver menos que um comboio, uma diligência e a decisão de partir entre mim e ti.
Assim fico, fico... Eu sou o que sempre quer partir,
E fica sempre, fica sempre, fica sempre,
Até à morte fica, mesmo que parta, fica, fica, fica...

Torna-me humano, ó noite, torna-me fraterno e solícito.
Só humanitariamente é que se pode viver.
Só amando os homens, as ações, a banalidade dos trabalhos,
Só assim - ai de mim! -, só assim se pode viver.
Só assim, o noite, e eu nunca poderei ser assim!

Vi todas as coisas, e maravilhei-me de tudo,
Mas tudo ou sobrou ou foi pouco - não sei qual - e eu sofri.
Vivi todas as emoções, todos os pensamentos, todos os gestos,
E fiquei tão triste como se tivesse querido vivê-los e não conseguisse.
Amei e odiei como toda gente,
Mas para toda a gente isso foi normal e instintivo,
E para mim foi sempre a exceção, o choque, a válvula, o espasmo.

Vem, ó noite, e apaga-me, vem e afoga-me em ti.
Ó carinhosa do Além, senhora do luto infinito,
Mágoa externa na Terra, choro silencioso do Mundo.
Mãe suave e antiga das emoções sem gesto,
Irmã mais velha, virgem e triste, das idéias sem nexo,
Noiva esperando sempre os nossos propósitos incompletos,
A direção constantemente abandonada do nosso destino,
A nossa incerteza pagã sem alegria,
A nossa fraqueza cristã sem fé,
O nosso budismo inerte, sem amor pelas coisas nem êxtases,
A nossa febre, a nossa palidez, a nossa impaciência de fracos,
A nossa vida, o mãe, a nossa perdida vida...

Não sei sentir, não sei ser humano, conviver
De dentro da alma triste com os homens meus irmãos na terra.
Não sei ser útil mesmo sentindo, ser prático, ser quotidiano, nítido,
Ter um lugar na vida, ter um destino entre os homens,
Ter uma obra, uma força, uma vontade, uma horta,
Unia razão para descansar, uma necessidade de me distrair,
Uma cousa vinda diretamente da natureza para mim.

Por isso sê para mim materna, ó noite tranqüila...
Tu, que tiras o mundo ao mundo, tu que és a paz,
Tu que não existes, que és só a ausência da luz,
Tu que não és uma coisa, rim lugar, uma essência, uma vida,
Penélope da teia, amanhã desfeita, da tua escuridão,
Circe irreal dos febris, dos angustiados sem causa,
Vem para mim, ó noite, estende para mim as mãos,
E sê frescor e alívio, o noite, sobre a minha fronte...
'Tu, cuja vinda é tão suave que parece um afastamento,
Cujo fluxo e refluxo de treva, quando a lua bafeja,
Tem ondas de carinho morto, frio de mares de sonho,
Brisas de paisagens supostas para a nossa angústia excessiva...
Tu, palidamente, tu, flébil, tu, liquidamente,
Aroma de morte entre flores, hálito de febre sobre margens,
Tu, rainha, tu, castelã, tu, dona pálida, vem...

Sentir tudo de todas as maneiras,
Viver tudo de todos os lados,
Ser a mesma coisa de todos os modos possíveis ao mesmo tempo,
Realizar em si toda a humanidade de todos os momentos
Num só momento difuso, profuso, completo e longínquo.

Eu quero ser sempre aquilo com quem simpatizo,
Eu torno-me sempre, mais tarde ou mais cedo,
Aquilo com quem simpatizo, seja uma pedra ou uma ânsia,
Seja uma flor ou uma idéia abstrata,
Seja uma multidão ou um modo de compreender Deus.
E eu simpatizo com tudo, vivo de tudo em tudo.
São-me simpáticos os homens superiores porque são superiores,
E são-me simpáticos os homens inferiores porque são superiores também,
Porque ser inferior é diferente de ser superior,
E por isso é uma superioridade a certos momentos de visão.
Simpatizo com alguns homens pelas suas qualidades de caráter,
E simpatizo com outros pela sua falta dessas qualidades,
E com outros ainda simpatizo por simpatizar com eles,
E há momentos absolutamente orgânicos em que esses são todos os homens.
Sim, como sou rei absoluto na minha simpatia,
Basta que ela exista para que tenha razão de ser.
Estreito ao meu peito arfante, num abraço comovido,
(No mesmo abraço comovido)
O homem que dá a camisa ao pobre que desconhece,
O soldado que morre pela pátria sem saber o que é pátria,
E o matricida, o fratricida, o incestuoso, o violador de crianças,
O ladrão de estradas, o salteador dos mares,
O gatuno de carteiras, a sombra que espera nas vielas —
Todos são a minha amante predileta pelo menos um momento na vida.

Beijo na boca todas as prostitutas,
Beijo sobre os olhos todos os souteneurs,
A minha passividade jaz aos pés de todos os assassinos
E a minha capa à espanhola esconde a retirada a todos os ladrões.
Tudo é a razão de ser da minha vida.

Cometi todos os crimes,
Vivi dentro de todos os crimes
(Eu próprio fui, não um nem o outro no vicio,
Mas o próprio vício-pessoa praticado entre eles,
E dessas são as horas mais arco-de-triunfo da minha vida).

Multipliquei-me, para me sentir,
Para me sentir, precisei sentir tudo,
Transbordei, não fiz senão extravasar-me,
Despi-me, entreguei-rne,
E há em cada canto da minha alma um altar a um deus diferente.

Os braços de todos os atletas apertaram-me subitamente feminino,
E eu só de pensar nisso desmaiei entre músculos supostos.

Foram dados na minha boca os beijos de todos os encontros,
Acenaram no meu coração os lenços de todas as despedidas,
Todos os chamamentos obscenos de gesto e olhares
Batem-me em cheio em todo o corpo com sede nos centros sexuais.
Fui todos os ascetas, todos os postos-de-parte, todos os como que esquecidos,
E todos os pederastas - absolutamente todos (não faltou nenhum).
Rendez-vous a vermelho e negro no fundo-inferno da minha alma!

(Freddie, eu chamava-te Baby, porque tu eras louro, branco e eu amava-te,
Quantas imperatrizes por reinar e princesas destronadas tu foste para mim!)
Mary, com quem eu lia Burns em dias tristes como sentir-se viver,
Mary, mal tu sabes quantos casais honestos, quantas famílias felizes,
Viveram em ti os meus olhos e o meu braço cingido e a minha consciência incerta,
A sua vida pacata, as suas casas suburbanas com jardim,
Os seus half-holidays inesperados...
Mary, eu sou infeliz...
Freddie, eu sou infeliz...
Oh, vós todos, todos vós, casuais, demorados,
Quantas vezes tereis pensado em pensar em mim, sem que o fósseis,
Ah, quão pouco eu fui no que sois, quão pouco, quão pouco —
Sim, e o que tenho eu sido, o meu subjetivo universo,
Ó meu sol, meu luar, minhas estrelas, meu momento,
Ó parte externa de mim perdida em labirintos de Deus!

Passa tudo, todas as coisas num desfile por mim dentro,
E todas as cidades do mundo, rumorejam-se dentro de mim ...
Meu coração tribunal, meu coração mercado,
Meu coração sala da Bolsa, meu coração balcão de Banco,
Meu coração rendez-vous de toda a humanidade,
Meu coração banco de jardim público, hospedaria,
Estalagem, calabouço número qualquer cousa
(Aqui estuvo el Manolo en vísperas de ir al patíbulo)
Meu coração clube, sala, platéia, capacho, guichet, portaló,
Ponte, cancela, excursão, marcha, viagem, leilão, feira, arraial,
Meu coração postigo,
Meu coração encomenda,
Meu coração carta, bagagem, satisfação, entrega,
Meu coração a margem, o lirrite, a súmula, o índice,
Eh-lá, eh-lá, eh-lá, bazar o meu coração.

Todos os amantes beijaram-se na minh'alma,
Todos os vadios dormiram um momento em cima de mim,
Todos os desprezados encostaram-se um momento ao meu ombro,
Atravessaram a rua, ao meu braço, todos os velhos e os doentes,
E houve um segredo que me disseram todos os assassinos.

(Aquela cujo sorriso sugere a paz que eu não tenho,
Em cujo baixar-de-olhos há uma paisagem da Holanda,
Com as cabeças femininas coiffées de lin
E todo o esforço quotidiano de um povo pacífico e limpo...
Aquela que é o anel deixado em cima da cômoda,
E a fita entalada com o fechar da gaveta,
Fita cor-de-rosa, não gosto da cor mas da fita entalada,
Assim como não gosto da vida, mas gosto de senti-la ...

Dormir como um cão corrido no caminho, ao sol,
Definitivamente para todo o resto do Universo,
E que os carros me passem por cima.)

Fui para a cama com todos os sentimentos,
Fui souteneur de todas ás emoções,
Pagaram-me bebidas todos os acasos das sensações,
Troquei olhares com todos os motivos de agir,
Estive mão em mão com todos os impulsos para partir,
Febre imensa das horas!
Angústia da forja das emoções!
Raiva, espuma, a imensidão que não cabe no meu lenço,
A cadela a uivar de noite,
O tanque da quinta a passear à roda da minha insônia,
O bosque como foi à tarde, quando lá passeamos, a rosa,
A madeixa indiferente, o musgo, os pinheiros,
Toda a raiva de não conter isto tudo, de não deter isto tudo,
Ó fome abstrata das coisas, cio impotente dos momentos,
Orgia intelectual de sentir a vida!

Obter tudo por suficiência divina —
As vésperas, os consentimentos, os avisos,
As cousas belas da vida —
O talento, a virtude, a impunidade,
A tendência para acompanhar os outros a casa,
A situação de passageiro,
A conveniência em embarcar já para ter lugar,
E falta sempre uma coisa, um copo, uma brisa, urna frase,
E a vida dói quanto mais se goza e quanto mais se inventa.

Poder rir, rir, rir despejadamente,
Rir como um copo entornado,
Absolutamente doido só por sentir,
Absolutamente roto por me roçar contra as coisas,
Ferido na boca por morder coisas,
Com as unhas em sangue por me agarrar a coisas,
E depois dêem-me a cela que quiserem que eu me lembrarei da vida.

Sentir tudo de todas as maneiras,
Ter todas as opiniões,
Ser sincero contradizendo-se a cada minuto,
Desagradar a si próprio pela plena liberalidade de espírito,
E amar as coisas como Deus.

Eu, que sou mais irmão de uma árvore que de um operário,
Eu, que sinto mais a dor suposta do mar ao bater na praia
Que a dor real das crianças em quem batem
(Ah, como isto deve ser falso, pobres crianças em quem batem —
E por que é que as minhas sensações se revezam tão depressa?)
Eu, enfim, que sou um diálogo continuo,
Um falar-alto incompreensível, alta-noite na torre,
Quando os sinos oscilam vagamente sem que mão lhes toque
E faz pena saber que há vida que viver amanhã.
Eu, enfim, literalmente eu,
E eu metaforicamente também,
Eu, o poeta sensacionista, enviado do Acaso
As leis irrepreensíveis da Vida,
Eu, o fumador de cigarros por profissão adequada,
O indivíduo que fuma ópio, que toma absinto, mas que, enfim,
Prefere pensar em fumar ópio a fumá-lo
E acha mais seu olhar para o absinto a beber que bebê-lo...
Eu, este degenerado superior sem arquivos na alma,
Sem personalidade com valor declarado,
Eu, o investigador solene das coisas fúteis,
Que era capaz de ir viver na Sibéria só por embirrar com isso,
E que acho que não faz mal não ligar importâricia à pátria
Porqtie não tenho raiz, como uma árvore, e portanto não tenho raiz
Eu, que tantas vezes me sinto tão real como uma metáfora,

Como uma frase escrita por um doente no livro da rapariga que encontrou no terraço,
Ou uma partida de xadrez no convés dum transatlântico,
Eu, a ama que empurra os perambulators em todos os jardins públicos,
Eu, o policia que a olha, parado para trás na álea,
Eu, a criança no carro, que acena à sua inconsciência lúcida com um coral com guizos.
Eu, a paisagem por detrás disto tudo, a paz citadina
Coada através das árvores do jardim público,
Eu, o que os espera a todos em casa,
Eu, o que eles encontram na rua,
Eu, o que eles não sabem de si próprios,
Eu, aquela coisa em que estás pensando e te marca esse sorriso,
Eu, o contraditório, o fictício, o aranzel, a espuma,
O cartaz posto agora, as ancas da francesa, o olhar do padre,
O largo onde se encontram as suas ruas e os chauffeurs dormem contra os carros,
A cicatriz do sargento mal encarado,
O sebo na gola do explicador doente que volta para casa,
A chávena que era por onde o pequenito que morreu bebia sempre,
E tem uma falha na asa (e tudo isto cabe num coração de mãe e enche-o)...
Eu, o ditado de francês da pequenita que mexe nas ligas,
Eu, os pés que se tocam por baixo do bridge sob o lustre,
Eu, a carta escondida, o calor do lenço, a sacada com a janela entreaberta,
O portão de serviço onde a criada fala com os desejos do primo,
O sacana do José que prometeu vir e não veio
E a gente tinha uma partida para lhe fazer...
Eu, tudo isto, e além disto o resto do mundo...
Tanta coisa, as portas que se abrem, e a razão por que elas se abrem,
E as coisas que já fizeram as mãos que abrem as portas...
Eu, a infelicidade-nata de todas as expressões,
A impossibilidade de exprimir todos os sentimentos,
Sem que haja uma lápida no cemitério para o irmão de tudo isto,
E o que parece não querer dizer nada sempre quer dizer qualquer cousa...

Sim, eu, o engenheiro naval que sou supersticioso como uma camponesa madrinha,
E uso monóculo para não parecer igual à idéia real que faço de mim,
Que levo às vezes três horas a vestir-me e nem por isso acho isso natural,
Mas acho-o metafísico e se me batem à porta zango-me,
Não tanto por me interromperem a gravata como por ficar sabendo que há a vida...
Sim, enfim, eu o destinatário das cartas lacradas,
O baú das iniciais gastas,
A entonação das vozes que nunca ouviremos mais -
Deus guarda isso tudo no Mistério, e às vezes sentimo-lo
E a vida pesa de repente e faz muito frio mais perto que o corpo.
A Brígida prima da minha tia,
O general em que elas falavam - general quando elas eram pequenas,
E a vida era guerra civil a todas as esquinas...
Vive le mélodrame oú Margot a pleuré!
Caem as folhas secas no chão irregularmente,
Mas o fato é que sempre é outono no outono,
E o inverno vem depois fatalmente,
há só um caminho para a vida, que é a vida...

Esse velho insignificante, mas que ainda conheceu os românticos,
Esse opúsculo político do tempo das revoluções constitucionais,
E a dor que tudo isso deixa, sem que se saiba a razão
Nem haja para chorar tudo mais razão que senti-lo.

Viro todos os dias todas as esquinas de todas as ruas,
E sempre que estou pensando numa coisa, estou pensando noutra.
Não me subordino senão por atavisnio,
E há sempre razões para emigrar para quem não está de cama.

Das serrasses de todos os cafés de todas as cidades
Acessíveis à imaginação
Reparo para a vida que passa, sigo-a sem me mexer,
Pertenço-lhe sem tirar um gesto da algibeira,
Nem tomar nota do que vi para depois fingir que o vi.

No automóvel amarelo a mulher definitiva de alguém passa,
Vou ao lado dela sem ela saber.
No trottoir imediato eles encontram-se por um acaso combinado,
Mas antes de o encontro deles lá estar já eu estava com eles lá.
Não há maneira de se esquivarem a encontrar-me,
Não há modo de eu não estar em toda a parte.
O meu privilégio é tudo
(Brevetée, Sans Garantie de Dieu, a minh'Alma).

Assisto a tudo e definitivamente.
Não há jóia para mulher que não seja comprada por mim e para mim,
Não há intenção de estar esperando que não seja minha de qualquer maneira,
Não há resultado de conversa que não seja meu por acaso,
Não há toque de sino em Lisboa há trinta anos, noite de S. Carlos há cinqüenta
Que não seja para mim por uma galantaria deposta.

Fui educado pela Imaginação,
Viajei pela mão dela sempre,
Amei, odiei, falei, pensei sempre por isso,
E todos os dias têm essa janela por diante,
E todas as horas parecem minhas dessa maneira.

Cavalgada explosiva, explodida, como uma bomba que rebenta,
Cavalgada rebentando para todos os lados ao mesmo tempo,
Cavalgada por cima do espaço, salto por cima do tempo,
Galga, cavalo eléctron-íon, sistema solar resumido
Por dentro da ação dos êmbolos, por fora do giro dos volantes.
Dentro dos êmbolos, tornado velocidade abstrata e louca,
Ajo a ferro e velocidade, vaivém, loucura, raiva contida,
Atado ao rasto de todos os volantes giro assombrosas horas,
E todo o universo range, estraleja e estropia-se em mim.

Ho-ho-ho-ho-ho!...
Cada vez mais depressa, cada vez mais com o espírito adiante do corpo
Adiante da própria idéia veloz do corpo projetado,
Com o espírito atrás adiante do corpo, sombra, chispa,
He-la-ho-ho ... Helahoho ...

Toda a energia é a mesma e toda a natureza é o mesmo...
A seiva da seiva das árvores é a mesma energia que mexe
As rodas da locomotiva, as rodas do elétrico, os volantes dos Diesel,
E um carro puxado a mulas ou a gasolina é puxado pela mesma coisa.

Raiva panteísta de sentir em mim formidandamente,
Com todos os meus sentidos em ebulição, com todos os meus poros em fumo,
Que tudo é uma só velocidade, uma só energia, uma só divina linha
De si para si, parada a ciciar violências de velocidade louca...
Ho ----

Ave, salve, viva a unidade veloz de tudo!
Ave, salve, viva a igualdade de tudo em seta!
Ave, salve, viva a grande máquina universo!
Ave, que sois o mesmo, árvores, máquinas, leis!
Ave, que sois o mesmo, vermes, êmbolos, idéias abstratas,
A mesma seiva vos enche, a mesma seiva vos torna,
A mesma coisa sois, e o resto é por fora e falso,
O resto, o estático resto que fica nos olhos que param,
Mas não nos meus nervos motor de explosão a óleos pesados ou leves,
Não nos meus nervos todas as máquinas, todos os sistemas de engrenagem,
Nos meus nervos locomotiva, carro elétrico, automóvel, debulhadora a vapor

Nos meus nervos máquina marítima, Diesel, semi-Diesel,
Campbell, Nos meus nervos instalação absoluta a vapor, a gás, a óleo e a eletricidade,
Máquina universal movida por correias de todos os momentos!

Todas as madrugadas são a madrugada e a vida.
Todas as auroras raiam no mesmo lugar:
Infinito...
Todas as alegrias de ave vêm da mesma garganta,
Todos os estremecimentos de folhas são da mesma árvore,
E todos os que se levantam cedo para ir trabalhar
Vão da mesma casa para a mesma fábrica por o mesmo caminho...

Rola, bola grande, formigueiro de consciências, terra,
Rola, auroreada, entardecida, a prumo sob sóis, noturna,
Rola no espaço abstrato, na noite mal iluminada realmente
Rola ...

Sinto na minha cabeça a velocidade de giro da terra,
E todos os países e todas as pessoas giram dentro de mim,
Centrífuga ânsia, raiva de ir por os ares até aos astros
Bate pancadas de encontro ao interior do meu crânio,
Põe-me alfinetes vendados por toda a consciência do meu corpo,
Faz-me levantar-me mil vezes e dirigir-me para Abstrato,
Para inencontrável, Ali sem restrições nenhumas,
A Meta invisível — todos os pontos onde eu não estou — e ao mesmo tempo ...

Ah, não estar parado nem a andar,
Não estar deitado nem de pé,
Nem acordado nem a dormir,
Nem aqui nem noutro ponto qualquer,
Resol,,,er a equação desta inquietação prolixa,
Saber onde estar para poder estar em toda a parte,
Saber onde deitar-me para estar passeando por todas as ruas ...

Ho-ho-ho-ho-ho-ho-ho

Cavalgada alada de mim por cima de todas as coisas,
Cavalgada estalada de mim por baixo de todas as coisas,
Cavalgada alada e estalada de mim por causa de todas as coisas ...

Hup-la por cima das árvores, hup-la por baixo dos tanques,
Hup-la contra as paredes, hup-la raspando nos troncos,
Hup-la no ar, hup-la no vento, hup-la, hup-la nas praias,
Numa velocidade crescente, insistente, violenta,
Hup-la hup-la hup-la hup-la ...

Cavalgada panteísta de mim por dentro de todas as coisas,
Cavalgada energética por dentro de todas as energias,
Cavalgada de mim por dentro do carvão que se queima, da lâmpada que arde,
Clarim claro da manhã ao fundo
Do semicírculo frio do horizonte,
Tênue clarim longínquo como bandeiras incertas
Desfraldadas para além de onde as cores são visíveis ...

Clarim trêmulo, poeira parada, onde a noite cessa,
Poeira de ouro parada no fundo da visibilidade ...

Carro que chia limpidamente, vapor que apita,
Guindaste que começa a girar no meu ouvido,
Tosse seca, nova do que sai de casa,
Leve arrepio matutino na alegria de viver,
Gargalhada súbita velada pela bruma exterior não sei como,
Costureira fadada para pior que a manhã que sente,
Operário tísico desfeito para feliz nesta hora
Inevitavelmente vital,
Em que o relevo das coisas é suave, certo e simpático,
Em que os muros são frescos ao contacto da mão, e as casas
Abrem aqu; e ali os olhos cortinados a branco...

Toda a madrugada é uma colina que oscila,
...................................................................
... e caminha tudo

Para a hora cheia de luz em que as lojas baixam as pálpebras
E rumor tráfego carroça comboio eu sinto sol estruge

Vertigem do meio-dia emoldurada a vertigens —
Sol dos vértices e nos... da minha visão estriada,
Do rodopio parado da minha retentiva seca,
Do abrumado clarão fixo da minha consciência de viver.

Rumor tráfego carroça comboio carros eu sinto sol rua,
Aros caixotes trolley loja rua i,itrines saia olhos
Rapidamente calhas carroças caixotes rua atravessar rua
Passeio lojistas "perdão" rua
Rua a passear por mim a passear pela rua por mim
Tudo espelhos as lojas de cá dentro das lojas de lá
A velocidade dos carros ao contrário nos espelhos oblíquos das montras,
O chão no ar o sol por baixo dos pés rua regas flores no cesto rua
O meu passado rua estremece camion rua não me recordo rua

Eu de cabeça pra baixo no centro da minha consciência de mim
Rua sem poder encontrar uma sensação só de cada vez rua
Rua pra trás e pra diante debaixo dos meus pés
Rua em X em Y em Z por dentro dos meus braços
Rua pelo meu monóculo em círculos de cinematógrafo pequeno,
Caleidoscópio em curvas iriadas nítidas rua.
Bebedeira da rua e de sentir ver ouvir tudo ao mesmo tempo.
Bater das fontes de estar vindo para cá ao mesmo tempo que vou para lá.
Comboio parte-te de encontro ao resguardo da linha de desvio!
Vapor navega direito ao cais e racha-te contra ele!
Automóvel guiado pela loucura de todo o universo precipita-te
Por todos os precipícios abaixo
E choca-te, trz!, esfrangalha-te no fundo do meu coração!

À moi, todos os objetos projéteis!
À moi, todos os objetos direções!
À moi, todos os objetos invisíveis de velozes!
Batam-me, trespassem-me, ultrapassem-me!
Sou eu que me bato, que me trespasso, que me ultrapasso!
A raiva de todos os ímpetos fecha em círculo-mim!

Hela-hoho comboio, automóvel, aeroplano minhas ânsias,
Velocidade entra por todas as idéias dentro,
Choca de encontro a todos os sonhos e parte-os,
Chamusca todos os ideais humanitários e úteis,
Atropela todos os sentimentos normais, decentes, concordantes,
Colhe no giro do teu volante vertiginoso e pesado
Os corpos de todas as filosofias, os tropos de todos os poemas,
Esfrangalha-os e fica só tu, volante abstrato nos ares,
Senhor supremo da hora européia, metálico a cio.
Vamos, que a cavalgada não tenha fim nem em Deus!
...............................................................
...............................................................
...............................................................
...............................................................

Dói-me a imaginação não sei como, mas é ela que dói,
Declina dentro de mim o sol no alto do céu.
Começa a tender a entardecer no azul e nos meus nervos.
Vamos ó cavalgada, quem mais me consegues tornar?
Eu que, veloz, voraz, comilão da energia abstrata,
Queria comer, beber, esfolar e arranhar o mundo,
Eu, que só me contentaria com calcar o universo aos pés,
Calcar, calcar, calcar até não sentir.
Eu, sinto que ficou fora do que imaginei tudo o que quis,
Que embora eu quisesse tudo, tudo me faltou.

Cavalgada desmantelada por cima de todos os cimos,
Cavalgada desarticulada por baixo de todos os poços,
Cavalgada vôo, cavalgada seta, cavalgada pensamento-relâmpago,
Cavalgada eu, cavalgada eu, cavalgada o universo — eu.
Helahoho-o-o-o-o-o-o-o ...

Meu ser elástico, mola, agulha, trepidação ...

Álvaro de Campos, 22-5-1916

Não, Não é cansaço...

Álvaro de Campos


Não, não é cansaço...
É uma quantidade de desilusão
Que se me entranha na espécie de pensar,
É um domingo às avessas
Do sentimento,
Um feriado passado no abismo...

Não, cansaço não é...
É eu estar existindo
E também o mundo,
Com tudo aquilo que contém,
Com tudo aquilo que nele se desdobra
E afinal é a mesma coisa variada em cópias iguais.

Não. Cansaço porquê?
É uma sensação abstracta
Da vida concreta —
Qualquer coisa como um grito
Por dar,
Qualquer coisa como uma angústia
Por sofrer,
Ou por sofrer completamente,
Ou por sofrer como...
Sim, ou por sofrer como...
Isso mesmo, como...

Como quê?...
Se soubesse, não haveria em mim este falso cansaço.

Ai, cegos que cantam na rua,
Que formidável realejo
Que é a guitarra de um, e a viola do outro, e a voz dela!)

Porque oiço, vejo.
Confesso: é cansaço!...

quinta-feira, 21 de janeiro de 2010

Recolhimento (Recueillement)

CHARLES BAUDELAIRE

Sê sábia, ó minha Dor, e queda-te mais quieta.
Reclamavas a tarde; eis que ela vem descendo:
Sobre a cidade um véu de sombras se projeta,
A alguns trazendo a angústia, a paz a outros trazendo.

Enquanto dos mortais a multidão abjeta,
Sob o flagelo do prazer, algoz horrendo,
Remorsos colhe à festa e sôfrega se inquieta,
Dá-me, ó Dor, tua mão; vem por aqui, correndo

Deles. Vem ver curvarem-se os Anos passados
Nas varandas do céu, em trajes antiquados;
Surgir das águas a Saudade sorridente;

O sol que numa arcada agoniza e se aninha
E, qual longo sudário arrastar-se no Oriente,
Ouve, querida, a doce Noite que caminha.

terça-feira, 19 de janeiro de 2010

Florador

Pra saber que dia é hoje,
teria que dizer alguma coisa...
Mas que coisa?
Todas as coisas já foram ditas,
inúmeras e incontáveis vezes.
Pra saber o que dizer,
deveria ter o que beber...
Mas pra quê?
Se dizer, já não mais vale
que o trago que suspiro
do copo que me absorve.
Pra beber qualquer bebida
Teria que fumar uns cigarros...
Mas se o fogo que o acende
já não é o que motiva
mas o que consome,
vale a pena preservar
o vício de ser homem?
Pra ser homem deveria
ter nas mãos cada vida,
palpite, voto e decisão.
Mas por quê?
Se só se vive
apartado, iludido,
embriagado de indecisão.
O melhor é ser o fruto tardio de uma árvore que simula florir pouco a pouco, dia a dia, flor a dor em cada estação.

sexta-feira, 8 de janeiro de 2010

Se fosse Deus, comeria as montanhas
Entornaria sua seiva num desvario
Na vontade de ver suas entranhas
Beberia todos os rios

Mostraria aos homens que não adiantam os santuários
De ouro negro, suor vermelho e sangue frio
Os faria ver que todas essas coisas me são alheias
Que os meus ídolos são sol, lua, calor e frio

E que não adianta chamar
Pois palavras não há pra alcançar
E que na vontade de encontrar

Não adianta se consternar,baixar os olhos, rezar
Pois seria todo o mundo, pessoa e lugar
Viver é a única oração que se pode dedicar
Se eu algum dia encontrei poesia
Foi nos desvarios, nos sorrisos torpes
Que somente vamos encontrar no baixo ventre
Nas esquinas solitárias de ruas tortas

Não há poesia que não faça curva
E vida que seja essencialmente luminosa

Ela só se dá quando cai o véu
As ruas expõem sua face nua
Onde donzelas ofertam sua carne crua
E andaimes nos mostram o céu

Homens andam atabalhoados a perder o ócio
Ocupações mil – compro ouro e outros
Ali está posta a poesia que sobrevive à ruína
Por trás da cegueira de todo o negócio

E ainda tem os meninos, pequenos saltimbancos
Brincam, brigam, pedem, assaltam
Só não se sabe se chegarão a ter idade para os bancos
Talvez, algum que seja talentoso e versado na arte da sociedade
Roubo também é propriedade.

E no meio, caminha solitário algum desajustado.
Um cigarro entre os dedos, caneta no bolso,
Sempre pronto a inutilizar alguns versos
Idéias na mente, vontades ardentes
De ver toda e qualquer poesia,
Por mais feia, bandida, ou vadia.
Mutar-se em canção inocente.

Beatriz

Esta noite, como em raras noites, sonhei
Você me apareceu, tensa e amargurada
Cabelos que indicavam tormenta e tempestade
Vontades que ultrapassavam qualquer realidade

E eu, como sempre, estupidamente desajeitado
Lancei-me sobre você e pela primeira vez
Nossas almas se tocaram, corpos se enlaçaram
Quis de modo desesperado carregar seu fardo

O amor se deu de forma limpa
Suave e denso como um rio lento
Que a ácida chuva ainda não tocou,
Não teve a ousadia de provocar

Neste dia, foi imensamente difícil acordar
E lembrar-me das tuas mãos aneladas,
Da tua fronte limpa, infantil.
Que a dureza do meu corpo pensou um dia
Poder beijar.

E agora, que te encontras mais distante
Fico a lembrar-me da alegria dos cafés
Dos cigarros que fumei parar te esperar passar
De como o doce de tuas palavras
Retiravam o veneno das minhas

E vejo que tudo que fiz, não foi nada além
De, na fumaça que se esvai, te representar
Continuo a fazê-lo, consciente
Pois pra mim, se algo é impossível
É te esquecer, Beatriz, deixar de te amar.