terça-feira, 29 de dezembro de 2009

O mundo é feito de homens
Que tão diferentes fazem a vida
E a fazem de forma tão confusa
Como gotas que caem ao simultaneamente,
Mas não são a mesma chuva

Se a vida é uma só
Não deve haver melhor
Calar é também falar,
Ouvir também é ver,
Sentir, pensar

Porém, se as distâncias nos tornam diferentes
Na batida em que nós fabricamos as teias,
Densas e resistentes; não passam de posses,
Poderes, pó ou areia

Já é tempo de desfiar esse tecido,
Desafiar todo o sentido,
Despir a nu cada indivíduo.
Como garotos que brincam na tempestade,
Como soluços bêbados de amor no telhado.

E, pela primeira vez, olhar
Não para o que dista de nós,
Para o que chega até aqui
Deixa um abraço,
Faz o favor de pedir um favor
Ao mostrar-se
Feliz, doloroso, admirado, perdido...

29/12/2009 mas foi feita amanhã...

sexta-feira, 11 de dezembro de 2009

Ironia, como amo a ironia! Que belezas ela esconde!
A ironia é um jeito mais direto de dizer meias palavras.
É uma gargalhada pra dentro. Dama sagaz em línguas permissivas.
Se te pareço sério, devias ver o que se fez da minha vida quando ainda muito jovem
Se triste, era pra você saber o que motiva a minha mágoa agora velha
Se sonambólico, é que o sono não dá conta da visão desses futuros
Se soturno, é que não posso ver para além da alegria dos que morrem

Exposto está o que há de verdadeiro no meu corpo que apodrece
Não há alma saudável que não se enferme nesse mundo já doente
Sorumbático, caminho sob a vontade do mundo
Não por culpa deles, mas pela minha, de ficar mudo.

Me apoderaria de coisas para além das coisas
Faria votos para além do mortos
Veria belezas que não ocultassem certezas
Cantaria canções que não, apenas, prantos

Seria o irmão dos desconhecidos,
O anônimo dos amados,
O amigo dos que se rejubilam
A sede de homens que, leves, cintilam.

Mas perdi todo o muito mais o que dizer.
Termino sorumbático, só porque tenho.
Mas não imaginem vocês que toda vida é desprazer...
Essa é uma tarefa só minha, algo pelo que me empenho.

segunda-feira, 23 de novembro de 2009

Fuga em Dor Maior

Gosto das fugas sinceras,
Dos que assumem o desgosto.
Não chegue à minha frente
Como quem se alegra!
Tampe a falsidade do seu rosto...
Veja que é feliz o que sente –
Já que nada é o que nos dá,
O direito de franzir o corpo
E fingir que não é gente
Aquele que nos pediu pra amar.
Estão enferrujados
o ferro e a solidão,
o jugo com sua casa,
o medo e a noite vasta,
porém o sonho não.

Estão enferrujadas
a morte e sua aljava,
a faca sob a toca,
porém, o braço não:
quando se ergue, corta.

Carlos Nejar



Copiei de outro blog, se fez inevitável.

quarta-feira, 18 de novembro de 2009

Dança

Para onde quer que fujamos
O viver-se é inevitável
Não há maldições sem ter planos
De ver todo o inefável

Saímos, então, a correr pelo salão
Eretos em heresia com valsa
Bailando a morte, a dor de quem vê o chão
Mas não vê os pés que se movimentam

Perversos são sim os brancos sorrisos
Da gente amarela que dança a música
E não quer fazer-se para além do impreciso
Jogo de pernas de uma valsa singela

Dancemos aqui ou acolá
Porque mais que o ritmo mude
Por mais que os pares se separem
Será sempre a mesma melodia a tocar.

Viagens

Até hoje, todos os dias e os do porvir
Viver é conviver com a impossibilidade dos possíveis
Existir sob a égide da frustração e sorrir
Amar os porões e devanear sonhos inacessíveis

Trazer ao peito a dor de saber
Saber-se dor, ouvir as portas fechar
Tomar-se por elevado, oco ao quadrado
Beijar o seio e se alimentar do vago

Nadamos no onírico, desarranjado fazer
Na vanidade que aborrece cada subsistir
Sorrindo farças às lâminas, ao poder

Mas, se só lágrimas nos vem às faces
O que é pra ser?
Não há viagens que acabem sem disfarces.

Gustav Klimt

sexta-feira, 13 de novembro de 2009

Caustica
segue minha poesia
por estas linhas tao tortas
revivento, no momento,
tantas palavras ja mortas.

Nautica
distancia entre o saber
e o fazer, que separa
o homem e o seu dever
natural de consciencia.

Plastica
relaçao que acentua
tal distancia entre homens,
transforma, entao, de nua
em vestida, a verdade.

Tatica
e sub-repticiamente
insinuam-nos os planos
vis, de, em detrimento
do homem, im
*plantaçao da

Tecnica,
mitigadora do Ser,
reino e multidominio da
pluralidade do ter,
pura idiossincrasia

Mitica.
Movimento todd o mundo
em busca daqueles deuses
que o tragaram ao fundo
de seus recessos obscuros.

Critica
e avidamente lanço-me
a arrancar do futuro,
antes que o presente tome,
poesia, triste rumo.

Eduardo Cruz

domingo, 8 de novembro de 2009

Willian-Adolphe Bouguereau

Madrugada

Mais uma madrugada em casa.
Mais uma dose de mim,
só pra tornar a coisa toda mais sinistra
Só pra dotar o peito daquele fervor, é ruim.

Mais uma garrafa de café que se vai
E com ela todos os cigarros do maço recém adquirido
Vou fumando, um atrás do outro,
Como se eles agregassem às coisas algum sentido.

Fico pensando em dias passados
Todo nostálgico, querendo rever a saudade
Querendo pensar que tudo ainda tem seu tempo.

Porém, a cada dia, cada sensação,
Não vejo nada além do irreversível de toda situação.
De toda a loucura em que me imiscuí
e onde me eximi de todo pecado de agir.


07/11/09

Sulfúrico

A cada dia que passa eu penso menos! É penoso ver como, agora, prostrado, desfaleço diante desse desagradável viver. Cotidiano é tudo aquilo que pesa sobre olhos cansados, falta é presença única em todos os momentos. Tudo se transfigura num desejo pálido, nada sensual, morbidez que leva a vida adiante. Sem mais, nem menos.
Hoje, nem o ópio consola, não há orientes. Horizontes perderam sua felicidade, ganharam verticalidade; poesia já foi feita, hoje tudo é análise. Não se pode mais perguntar os inocentes por quês, é melhor se resignar e comprar um já pronto.
Amar se torna tarefa impossível, tentação sofrida, violência mitigada por todo o aço. Aço que é invólucro de toda subjetividade, protetor de ouvidos contra qualquer palavra afável, do corpo contra todo gesto.
E já que, "num rosto vazio até um arranhão é um enfeite": escondo os arranhões cá dentro, bem fundo, para que não se observe nada nos vazios das minhas farsas ou faces.
Todos os pontos se tornaram incomuns, não há mais retas para ligá-los, acabaram-se. Ganhamos a cada passo uma fluidez sulfúrica, dolorida, e só quem sente é aquele natimorto, sentimental, convulsivo. Aquele que não coincide com sua imagem no espelho e que há muito já foi ultrapassado por sua sombra.

Quantos dias cinzentos a vida me reserva?
O incrível é que, talvez?, sejam todos eles sempre cinza. Afundados em sua objetividade malquista, num mundo de subjetividades idiossincráticas.

Testamento

Nesses poucos e curtos anos já recebi o meu pão
Em mãos afetivas aprendi a chorar
Senti que o mundo se encaminhava na solidão
Vi amigos partirem sem que os pudesse segurar

Queimei minhas mãos ao tentar apertar
Àqueles que por longo tempo julguei ter paixão
Amei a todos que vi caminhar
Por sendas ecuras em comunhão

E a cada imagem, cada sensação
Vi meu erro, o primeiro, se perpetuar
Quis mudar, colocar meus pés no chão

Fazer de minha vida um desvio do olhar
Tentar me livrar de cada sentimento vão
Mas não consegui deixar de amar,
Irmão.

...

Nada me desce
Todos são estranhos
Mas acontece
Que só em sonhos
A vida aquece a
Todos como somos...

Bêbado

Idéias divergentes sobre objetos parecidos
Objetivos próximos por caminhos esquecidos
Fados idênticos para ombros cansados
Ser humano não é fazer o mundo exato

Tragar cada cigarro como se a vida fosse
Faz sentir o mundo para além da tosse
Onde toda tolice tem seu lugar
Com a impertinência daquele que deixou de lutar

Oração

Mas, ah, se eu não vivesse essa loucura!
Meu deus que seria de mim sem essa boca seca?
Sem essa falta de sono e essa cerveja posta como um fardo?
Teria que rever as minhas vestes e andar preocupado.

Sou miserável apenas por pertencer a cada lado
Tenho tomado distâncias de um mundo
Que me pertence menos a cada segundo
E, sinceramente, todo minuto é enfado.

Tenho apenas a falta de meus vícios
Não há mais volta para eles e, pra mim
Já, desde muito não há, inícios.
Consumi o todo e o por fim

E, daqui, vejo o foda-se em tudo para nós.
Obrigado meu deus!
Por ter me dotado dessa profissão,
Descrença é o que tenho em cada pedaço de vós!

Se

Se não é nossa culpa, sinto muito, mas não sou um de nós.

Poesia?

Um amigo me pediu um dia
Para que fizesse um verso
Que ensinasse a fazer poesia
A verdade é que nunca fiz verso,
Nunca rimei. Não sei criar o que não se cria
Só sei ver o que detesto
E por pra fora o que me angustia.

Se for assim que se faz
Não quero ser poeta
Quero esquecer agora
Que já me escrevi um dia

Poeta é gente mais prosa
E eu só tenho as brincadeiras
Dum peito que ferve em tormenta
E nunca silencia.

Amaram

Amaram-se em pequenas palavras
Em poucos instantes se olharam
Ficaram suspensos em suspeição
Vibraram com a fuga de qualquer emoção

Quiseram até o ultimo instante
Olhar pra qualquer outro olho,
Ouvir qualquer outra tosse
Tocar qualquer outro corpo

Mas cederam sem perceber
Cederam à mais vaga possibilidade
A mais vaga possibilidade de se perder

Perderam-se então,
em olhares convulsivos,
em verdades que se fazem no chão

Urbanissimulador

Os carros me vem de encontro.
Fumaça, ruídos, motores, faróis, gente...
Peraí! Gente!?
Desconhecida gente interessada,
mas não em mim, claro!
e nem eu neles, óbvio!
Prefiro os carros...

sexta-feira, 6 de novembro de 2009

Ponderações

O que poderia querer
para além de ser humano?
Poderia querer ver
como uma águia, mas imagino-me tal como.
Talvez quisesse ser líquido,
mas posso ser chuva
quando o nosso tempo está seco.
Poderia querer ser tempo,
mas me contento,
sou o presente.
Quereria ser, talvez,
a representação que de mim fazem os outros,
porém, fico feliz, também eu, em desumanizá-los.
Deveria ser criança, mas já, agora, não há infância.
Me perdi,
ficarei por ser assim.

Futuro

Como saber do porvir se tão pouco dele está aqui
Se somos tantos e tão poucos? Com a selvageria de nossos rostos
Conseguiremos fazer sorrir a esse presente já passados
Cada tijolo desses nossos muros por construir?

Com que miríade de loucuras chegaremos lá?
Queremos tanto, mas sem olhar
Sabemos daqueles dias em que toda a distância
Se fará dessa infância.

Todo o pesar e todo contentamento se farão nobres
A caminhada se faz junto aos espíritos pobres
Ou não? Sabemos que o agora nem é pouco nem muito

Já não tenho certeza do que tenho nas mãos
Mas sei que tenho, e tenho a terra dos meus próprios chãos.
Com que presente chegarei a ser futuro?

Em excesso

Sofro de excesso de excessos, não sou exceção!

Paulo

Paulo,
não esqueci
da poesia
e
nem
da dor
continuo
caminhando
de lado.

Para alguém que me entenda

Me espere só um segundo,
Só pra ver como dói a sinceridade,
E como é verdadeiro aquele olhar que te dirigi.
Como pode ser perfeito o ideal,
Ideal de dor que persegue a nós dois, moça.

Queria ter coragem para lhe mostrar esse seu mundo,
Mundo de fugas, de aparências cultivadas.
Que queres tu, com a tua modernidade,
És, na verdade, menos contemporânea a cada dia
Bêbada como hoje, mas conformada como ontem.

Pensa um pouco mulher, como pode ser?
Queres guiar? Então, guia!
Mas pensas antes de me beijar, e,
Se calhar, morda-me o lábio até sangrar.

Desse modo saberei o que você realmente deseja.
Retira-me a sanidade de uma vez!
Bata-me na face, corta-me a garganta,
Por favor! Se não for assim, eu não aceito.

Deus-tino

O que achas que pode contra mim, meu senhor?
Não és tão grande quanto lhe atribuem os tolos,
Em nada és forte, teu culto já não existe em meu mundo
Queres deixar-me em maus lençóis mas, desconheces minha natureza
A fundo, és tão podre, se baseia apenas no infundável de minha vida
Sou imoral porque posso sê-lo, não me dizes nada sobre o que posso,

Sou surdo a seus esforços, não me puxe com o seu braço maldito.
No meu mundo não há musa e não há moira, entendes?
O meu mundo é dos homens factíveis, dos reais.
Dos viciados, dos imorais, esses são a minha imagem e semelhança.
Não é você que só não morre por não existir! Malditos sejamos nós!

Contraditórios em nossas preces
Somos seculares diante do divino
E divinos diante do secular.
Atenção!
Sejamos humanos!
Só isso deve ser respondido,
Diante de todas as perguntas
Afinal de contas, que mais nos resta.

Sou o que sou, amaldiçoado ou não.
E que me importam as maldições?
Todas frutos de perversões de nosso olhar
que faz o possível pra se desviar daquilo que é evidente.
Senhor destino, lhe reservo um beijo frio
O beijo daquele que sabe que nada mais é possível diante da sua figura.
Figura que já há muito não é pintada.

Rubros Olhos

Sábado às dez pras quatro da manhã
Só me resta a última dose da garrafa de conhaque
Uns vagos pensamentos sobre as coisas que deveria ter feito
Mas, em contrapartida, muito do rubro de seu cheiro.
A comoção me invade,
fico pensando no silêncio que nossas poucas palavras fizeram

Fico imaginando teus olhos que ainda brilham diante dos meus
Brilham raros, não são olhos que se dêem ao desfrute
E por vezes, se recusam, sublimes, a olhar.
Como poderia ser diferente, meu deus minúsculo?!
Isso me proporciona mais um gole de angústia.
O que devo esperar?

Não sei se fiz a mais ou a menos,
sei que fiz o que pude, e,
poder pouco é muito comum!
me desacostumei das palavras,
sentir me causou esterilidade verbal.
somente aos olhos e aos ouvidos cabem minha felicidade.
E se sinto é só por uma vontade que me escapa ao controle.

O problema,
É que,
Diante
Dessa face
Rubra,
Só me resta,
Abandonar
A razão.

Não poderia fazer nada além disso,
a vontade quer chegar à potencia.

Anaesthesis

The show must GO on
E eu nem sei pra onde vai, se é que vai
Mas é aí que vem a certeza do incerto
A justeza do incorreto, a ética da transgressão
É nesse ponto que bate a saudade
Dos tempos em que ser humano era descomplicado
Onde suas palavras só diziam o que diziam
E não havia hermenêutica capaz de subvertê-las
Mas, houve um tempo assim?

E eu nem sei como, se é que há jeito
Como poderia haver algo além de nós
O nós do agora. o do ontem? já não sei...
O do amanhã? eu duvido muito...
Porque haveria, também, de me preocupar com o amanhã?
Já me basta a incerteza do agora.
Turbilhão de sentimentos que nem parecem ser o que são
E talvez nem o sejam mesmo.
E que certeza é sensível?

Tenho andado confuso, perder o chão é fácil
O problema é ter que estar segurando os pavimentos
Essa construção que nem lógica tem!
Tenho nas mãos os sustentáculos de um conjunto vazio
Os julgamentos de um nobre, os hábitos de um burguês, as condições de um miserável.
Dá pra acreditar?!?!
Só poderia fazer algo que me dispensasse daquilo que pretende o mundo.
Nada, na verdade, era isso que eu gostaria de ter
Uma posição de observador, um deus nada poderoso
O sábio da vida comum, reprodutiva
Nada produtiva, sem métrica e sem lógica, como esse poema
Que eu nem sei se é poema, confissão, desabafo ou profissão de fé
Profissão de fé na descrença, só se for!

Queria poder rimar e dizer coisas belas, realmente interessantes, mas agora...
Agora ficarei mesmo é com essa anaesthesia
Geral! Dormência, desinteresse, desgosto, desdém...
Não quero nada além daquilo que não posso ter
Poema régio, José! de dores e ambigüidades
Vacilações sublimes, bipolaridade, tensão...

But, the show...
Fechem as cortinas, já é tempo!
Estou tão fragmentado hoje que deveria começar a andar por aí, me catando pelo chão.
Quem sabe no fim eu não encontro alguém?
Waiting for the worms or the wars. That’s all!

Mortuário

Se querem me matar, que o façam logo!
Não perguntem o modo, não me perscrutem
Não direi uma única palavra a respeito disso, de nada.

Não lhes darei dicas sobre a minha forma de minguar
Acabarei através da surpresa, pela criatividade de vocês
Sem saber que acabo ou que já não existo.

Não me farei morrer como imagino,
Minha mortalha está já reservada para todos visitarem
Descansarei como sempre, mas com um detalhe - será o descanso de um humano.

Saibam que mesmo sem encostar em mim
Entendo o que dizem, me encurralam em seus olhares
Me dão a força daquele que será reprovado sempre

Do rebelde, que não se curva diante de um amor insosso
De quem precisa de mais, de quem quer sempre ir além
Fazer-se junto, e mais, fazer-se homem.

Vocês podem até conseguir me enquadrar, me moralizar,
Fazer-me curvar, mas isso será uma morte, a morte que vocês não planejaram.
A minha morte, essa não é assim – é humana!

Me recuso terminantemente a cumprir regras,
Não firmarei acordos, não serei partidário de vocês,
Serei humano até o fim!
Cantigas de invencionices permeiam o meu peito
Este urra, retumba, ecoa, parindo sentimentos
que dançam ao som dessas canções
Minhas costelas vibram com cada nota
Eis que torno-me escrava desse parimento
intermitente, convulso, incontrolável.

Já não caibo mais em mim...
Também quero virar canção
viajar junto ao vento
sorrir em cada rodopio
florear entranhas
sussurrar poesia em cada esquina.

Michele de Assis

Deita

Deita-me à tua sombra mulher
Finge que por ao menos um mínimo instante fui teu

A verdade é que olhos ao olhar pra teu semblante
Viram apenas o que estava oculto,
se preocuparam tanto com as profundezas
que se esqueceram da superfície

Deixe-me descansar em teus braços,
Faz um esforço em pensar que assim permanecerei

Eu nunca te quis olhar como olhei,
Nunca te quis ver como vi, mas desnudo já desde tão cedo...
Não tive escolha, e hoje, agora
Não sou nada além de um já passou.

Deixe-me fingir-te a felicidade uma última vez,
A felicidade que nunca alçou vôo sobre a minha cabeça
A felicidade que por ser ave de rapina nunca se interessou
Na minha carne sempre a mostra, carne que já nasceu decomposta

Deixa eu te dar um último olhar,
aquele que persegui a minha vida inteira
o olhar despretensioso, de quem já chegou
de quem já cumpriu, de quem já gozou

depois disso, pode deitar-se à sua cova e,
então, fazer cumprir teu desejo, aquele
de sumir de minha memória, de sumir
com a minha memória, com a minha vontade de ti.

Pensamento Metafísico

Hoje sou dono da minha própria metafísica!
Mas e se não houver deus?
Vou ter que me candidatar...

Para Baudelaire

O rebelde não precisa de anjo que lhe force a amar o pobre, o aleijado, o leproso, pois ele já o faz naturalmente quando dirige seu olhar àqueles que se assemelham a ele. O rebelde é o aleijão desse mundo. Todos os outros são ímpios.

Entificação

O que queres meu filho
Está tudo aí!
Transforma-te no que tu és
Hoje és todas as coisas,
Mas está tudo em ti
Não precisa ser as coisas
E o que são as coisas?
Sem ser o que és não há coisas,
Nunca há.
Sirva-se de mim e de você
Não das coisas
Não és uma delas
Tome-me em teus braços
Quem precisa dessa parafernalha,
Quem precisa das coisas?
Essas tuas forcas, falsas forças
Não são teu ser e nem o meu.

O Noivo

Noivo de minha solidão espreito a um outro dia
Querendo ser mais do que ser, quero agonizar no gozo
O gozo da fortuna, do acaso, daquilo que ainda não é
Do que sou.

Gosto de ter entre os dedos a mais impura das águas
Aquela que desce dos céus de uma selva irrazoável, humana
Toda cidade me traz ao peito a angustia de minha solidão possível
Da minha companhia maculada, da TV que não assisto
Do que poderia ser aquele que não sou.

Quero saber da minha alma que anda perdida em meio às saias
Saias que pertencem às namoradas que não tive
E não tive por que não quis, nosso tempo foi adiado (pra sempre)
Adiado pela comoção de uma poesia vadia, sem rumo

Vago em desvarios, como se não fosse pra ser
Mas é, e por ser já merece as reverências
Todas prestadas por quem não conhece o que conheço
Pelo que há de vário em ser
E pelo que há de absoluto em não ser.

Se queres a verdade...

É com a verdade que tu sonhas menina?
É da verdade que tu dizes tais palavras?
Estás certa que não é de um sonho?
Não seria onírico o teu precioso mundo,
De verdade ocultada por uma sombra de transcendência
Onde os homens se freqüentam por serem simplesmente o que são,
E por nenhuma outra verdade mundana,
Por nenhum outro comércio de idéias?


É menina, eu já a algum tempo já não me faço outra coisa a não ser suicidar-me
Pela dor que, de ser homem se transforma em mercadoria
Por acaso seria do mesmo pão de que se alimentam lebre e lobo?
Por acaso seria o mesmo o papel do rei e do bobo?


Mas, é com infelicidade que digo,
Que há de existir sempre bobos
Que as lebres valerão menos que lobos,
E que homem há de sempre ser uma mercadoria,
Uma mercadoria metafisicamente simples.

Fado

De meu fado farsante
tal qual minha natureza enfadonha
Sonho com minha alma transfigurada em corpo
De subjetividade afinada
em minha fome de objetividade
Causo sentir em caos de palavra arrebatada
De paixão em eclipse
com revigorada mortificação
Faço de mim o feixe de lenha,
ardente inação.

Do cais mortuário
ao porto secular
De minha morte acesa
à luz de um grandiloqüente penar
Faço de minha mortalha
a vívida miríade do pensar
Julgar de mim mesmo,
passado e futuro
ao presente que não é
Ao mundano que se oculte
sob os lívidos fulgores de estar.